Reflexão Sobre o Debate: Fé, Respeito e Identidade em Contraste
O debate promovido pelo canal "Clone", reunindo um teólogo cristão (Israel Júnior) e uma praticante da Quimbanda e Umbanda (MC Trans), oferece um rico material para reflexão sobre os conflitos, as vivências e a busca por respeito no cenário religioso brasileiro. A discussão se aprofunda em questões teológicas, experiências pessoais e, crucialmente, na problemática da intolerância religiosa e da perseguição à comunidade LGBTQIA+.
O Confronto de Cosmologias e Fontes de Verdade
O cerne do debate reside na diferença fundamental sobre a fonte da verdade e o estilo de vida que a fé exige. Para Israel Júnior, o Evangelho é um lifestyle e não apenas uma religião, e o padrão de vida para o cristão é estritamente a Bíblia. Ele defende a doutrina da "Somente as Escrituras" (Sola Scriptura), um dos pilares da Reforma Protestante, onde a Bíblia é o manual de vida. O Evangelho, para ele, é um convite à transformação e a negar a si mesmo.
Em contrapartida, MC Trans baseia sua fé na oralidade, na ancestralidade e no respeito às pessoas que vieram antes, como os Preto Velhos, que trazem ensinamentos e cura. Ela argumenta que sua religião, a Quimbanda/Umbanda, trabalha com a evolução pessoal, seguindo regras básicas de respeito à sociedade e aos seus guias espirituais.
A natureza das entidades espirituais é um ponto de grande fricção. Israel, seguindo a tradição bíblica, não acredita que demônios tenham nomes específicos (como Pomba Gira ou Exu) e afirma que a Bíblia condena a consulta a outros espíritos, classificando tais manifestações como demoníacas. Já MC Trans, além de descrever as entidades como guias que auxiliam na evolução pessoal (como Zé Pilintra, que oferece conselhos baseados em sua vivência, ou Maria Navalha, que curou traumas), defende que a demonização dos nomes de suas entidades é uma tentativa de menosprezar e desrespeitar a religião de matriz africana.
A Perseguição e a Distorção do Evangelho
Um dos tópicos mais calorosos do debate é o uso da fé para perseguir e atacar. MC Trans relata que a perseguição contra a religião de matriz africana (Candomblé, Umbanda, Quimbanda) é "absurda em massa" e constante, manifestada pela demonização das entidades e pela quebra de terreiros.
Israel concorda que os pastores que "pegam o nome das pombageiras e ficam levando para dentro da casa de vocês" estão errados. Ele atribui essas práticas a um movimento neopentecostal barulhento, que ele considera uma minoria. Ele define esses "shows" com demônios e entidades como não-ortodoxos e, muitas vezes, charlatanismo.
A perseguição se estende à identidade. MC Trans critica veementemente o discurso de pastores que usam a Bíblia (por exemplo, a história de Sodoma e Gomorra ou passagens sobre afeminados) como "escudo" para atacar pessoas LGBTQIA+, incentivando a violência e o preconceito.
Identidade, Pecado e Escolha Pessoal
A questão da identidade trans e da homossexualidade é debatida sob a ótica do "pecado". Israel afirma que todo ser humano nasce com inclinações pecaminosas e que a fé cristã exige a negação de si mesmo. Ele não acredita que a transexualidade seja um "demônio" a ser expulso, mas sim uma inclinação com a qual a pessoa pode ter que conviver a vida toda. Contudo, ele enfatiza que para estar no ministério (como o Ministério de Louvor), a prática do que é biblicamente definido como pecado (como o adultério ou a transexualidade) seria um impedimento.
MC Trans defende que sua felicidade e sua existência vitoriosa, como mulher trans e mãe, provam que Deus a ama do jeito que ela é. Ela reivindica o livre arbítrio, decidindo que, se estiver errada, queimará no inferno "por vontade própria," pois essa é uma escolha dela. Ela ressalta a importância do respeito, lembrando que o Brasil é um país laico e que discursos de ódio que lutam contra a existência de minorias são prejudiciais.
O Legado do Diálogo
Apesar das profundas divergências e dos momentos acalorados, o debate sublinha a necessidade de diálogo e de respeito mútuo. Ambos os participantes reconhecem a importância de uma comunicação direta com o divino (seja através do Espírito Santo, no caso de Israel, ou se dirigindo a Deus diretamente em oração, no caso de MC Trans), mas divergem radicalmente sobre a necessidade de mediadores (entidades ou guias).
O principal aprendizado reside na distinção entre a doutrina e a intolerância. Enquanto o cristão tem o direito de pregar que algo é pecado em sua igreja, essa pregação não deve se traduzir em violência, assédio ou desrespeito à sobrevivência do outro fora do contexto religioso. O verdadeiro desafio, como exemplificado pelo debate, é manter a coerência da própria fé (seja seguindo a Bíblia, seja a ancestralidade) ao mesmo tempo em que se honra o princípio fundamental de que religião é algo muito pessoal e que o respeito deve prevalecer.
O debate serve como um espelho das tensões sociais e religiosas, onde a Bíblia é vista ora como uma orientação de vida, ora como uma "arma muito perigosa" nas mãos de quem a usa para justificar a perseguição. É um lembrete de que o diálogo honesto, mesmo que não resulte em consenso, é essencial para a convivência em uma sociedade plural.