O Precedente que Abalou a Estrutura: Lucro, Fraude e a Reconfiguração da Responsabilidade Digital
A recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que condenou uma das maiores empresas de tecnologia do planeta a ressarcir uma vítima de golpe veiculado via publicidade paga, não é apenas um caso isolado de estelionato digital; é um marco que pode redesenhar a forma como a internet funciona no que tange à publicidade patrocinada. Este precedente ameaça abalar estruturas jurídicas e operacionais há muito consideradas intocáveis pelas big techs.
O episódio em questão revela a face mais perigosa do sistema de anúncios pagos: um anúncio de falso leilão de veículos, impulsionado pelo sistema de publicidade, prometia preços atrativos e apresentava uma aparência profissional e convincente, sem denunciar qualquer risco ou fraude. O consumidor, confiando no selo de relevância da plataforma, realizou um pagamento de aproximadamente R$ 29.200, valor que nunca foi recuperado, pois o site era parte de um esquema sofisticado de phishing.
A Escala Criminosa e o Lucro Indevido
A gravidade do caso é evidenciada pela escala do golpe. Documentos anexados ao processo revelaram que aquele único anúncio fraudulento gerou mais de 52 milhões de impressões e mais de 566.000 cliques entre 2020 e 2021. Para a plataforma que veiculou o conteúdo, isso resultou em mais de R$ 318.000 de lucro direto, todo proveniente de uma página criminosa.
Essa constatação acendeu um alerta no judiciário: como um conteúdo fraudulentamente criado poderia circular com tamanha intensidade, dominando buscas, por meses, sem qualquer mecanismo de controle ou verificação mínima?. Atingir esse volume é um tipo de escala que só existe quando uma plataforma com poder global permite a amplificação indiscriminada do conteúdo. O lucro foi construído sobre cliques que levaram pessoas ao prejuízo, enquanto o golpe seguia ativo e crescendo.
O Fim da Neutralidade pela Via do Lucro
O eixo central da condenação reside na ausência de mecanismos mínimos de segurança na plataforma de anúncios. O TJRS não buscou censurar anúncios ou exigir que a empresa fiscalizasse toda a internet, mas sim impor a responsabilidade a quem lucra diretamente com a publicidade digital.
O tribunal foi claro: quando uma plataforma impulsiona um anúncio, utiliza dados comportamentais do usuário para direcionar o conteúdo e obtém lucro, ela deixa de ser neutra e passa a participar, mesmo que indiretamente, da cadeia de consumo. Essa tese nega a defesa da plataforma, que alegava ser apenas responsável pelo anunciante.
O Tribunal aplicou o Código de Defesa do Consumidor (CDC), reconhecendo que a publicidade direcionada gera uma remuneração indireta, transformando o serviço em algo economicamente ativo. Dessa forma, o prejuízo financeiro causado por conteúdo impulsionado e monetizado configura um defeito do serviço. A empresa não pode alegar ausência de responsabilidade quando lucra diretamente com o anúncio que resultou no dano.
Risco Inerente e a Participação Algorítmica
Um ponto crucial da decisão é o entendimento de que o golpe não foi um evento imprevisível, mas sim um "furtuito interno"—um risco inerente ao modelo de negócio. Se a plataforma opta por operar com publicidade massiva direcionada, baseada em dados comportamentais dos usuários (histórico de busca, localização, perfil) e com pouca ou nenhuma verificação prévia dos anunciantes, ela assume o risco daquilo que impulsiona.
O tribunal observou que os anúncios fraudulentos só atingem tantas vítimas porque são direcionados com base no comportamento do usuário, significando que a plataforma não apenas permitiu o golpe, mas o alimentou com informações sobre as próprias vítimas.
Essa mudança de paradigma retira o peso do prejuízo das costas do consumidor. O desembargador relator da decisão destacou que transferir a culpa para a vítima seria permitir que empresas com grande poder econômico continuassem operando sem investir o mínimo em verificação. A justiça deixou claro que o consumidor não pode ser culpado por confiar em um anúncio que, por todos os padrões visuais e funcionais, parece legítimo e aparece em destaque.
Implicações para o Futuro da Publicidade Digital
A decisão do Rio Grande do Sul, somada a outras semelhantes em diferentes estados brasileiros, traça uma linha crítica entre conteúdo de terceiros e conteúdo impulsionado com o lucro da plataforma.
Este movimento pressiona as big techs a revisarem seus algoritmos, validarem anunciantes, monitorarem categorias de risco e, principalmente, investirem em segurança preventiva com a mesma intensidade com que investem em expansão e lucro. Isso pode significar a exigência de validação de identidade para anunciantes e o bloqueio automático de categorias de alto risco, como leilões de veículos.
Não existe anúncio neutro quando ele é pago, segmentado e impulsionado por algoritmos; ele faz parte de uma cadeia de responsabilidade. Ao reconhecer a falha do serviço, a decisão do TJRS reposiciona o consumidor no centro da operação digital, obrigando os gigantes da tecnologia a repensarem seus modelos de operação e a garantirem um ambiente minimamente seguro.
A decisão atua como um farol: se uma plataforma digital lucra ao apontar o caminho, ela deve garantir que a rota não leve o usuário a um abismo.
