A Lei Magnitsky: Da Tragédia Pessoal a uma Ferramenta Global de Sanção

 






A Lei Magnitsky, formalmente conhecida como Sergei Magnitsky Rule of Law Accountability Act e, em sua versão ampliada, Global Magnitsky Act, é uma das mais importantes formas de punir agentes de Estado que promovem censura, perseguição política e corrupção ao redor do mundo. A sua origem remonta à trágica história de Sergei Magnitsky, um advogado tributarista russo cuja morte brutal na prisão impulsionou uma campanha internacional por justiça.


A História de Sergei Magnitsky: A Origem da Lei


Sergei Magnitsky era um advogado metódico e profundamente ético, que trabalhava para o Hermitage Capital, um dos fundos de investimento estrangeiros mais bem-sucedidos na Rússia. Em 2007, enquanto investigava documentos fiscais, Magnitsky descobriu uma gigantesca fraude: o próprio governo russo havia roubado 230 milhões de dólares (equivalente a 5,4 bilhões de rublos) através de reembolsos fiscais fraudulentos a empresas fantasmas.

Com a convicção de um cidadão honesto que acreditava nas leis, Magnitsky denunciou o crime às autoridades competentes. Contudo, sua denúncia não resultou na prisão dos culpados, mas sim na sua própria detenção. Em 24 de novembro de 2008, Sergei foi algemado em sua casa, na frente de sua família, e levado preso. A prisão de Magnitsky tornou-se uma obsessão para o regime russo, sendo pessoalmente supervisionada pelo ex-chefe do departamento K da KGB, Victor Voronim. As alegações de risco de fuga usadas para sua prisão preventiva eram falsas e fabricadas.

Durante seus 358 dias de detenção, Magnitsky foi submetido a um processo de tortura sistemática. Ele foi transferido várias vezes para celas com condições desumanas – sem aquecimento, vidros nas janelas, saneamento precário, água suja e comida contaminada. Ele adoeceu gravemente, sendo diagnosticado com pancreatite, pedras na vesícula e colistite, mas teve seu tratamento médico e cirurgia negados e seu pedido de revisão de suas queixas sobre a detenção e tratamento cruel foi negado. Suas mais de 20 solicitações desesperadas por atendimento médico, assim como as 450 queixas criminais que ele e seus advogados apresentaram, foram ignoradas ou indeferidas.

Além da tortura física, Sergei foi submetido a tortura psicológica, tendo seu contato com a esposa, filhos e tia negado. Ele foi constantemente pressionado por um homem não identificado a confessar crimes inexistentes e delatar associados de Bill Browder, CEO da Hermitage Capital.

Em 16 de novembro de 2009, com a saúde em estado crítico, Sergei Magnitsky foi transferido para um centro médico, mas acabou em uma solitária, onde foi algemado a uma grade e brutalmente espancado com cassetetes de borracha por oito guardas. Uma hora e dezenove minutos depois, um médico civil o encontrou morto no chão da cela, algemado, com hemorragia interna e traumatismo craniano. Ele tinha apenas 37 anos. Apesar da evidência clara, o Comitê Estatal de Investigação da Rússia e a Procuradoria-Geral declararam não haver irregularidades ou razões para investigação criminal, alegando que a morte ocorreu por insuficiência cardíaca aguda.


A Cruzada de Bill Browder e a Criação da Lei


Inconformado com a morte de seu advogado e amigo, Bill Browder, que havia se tornado inimigo número um de Putin por expor a corrupção na Rússia, iniciou uma cruzada internacional para responsabilizar os culpados. Ele levou a história de Magnitsky ao Congresso americano, apresentando provas e dando entrevistas, transformando-se de empresário em ativista internacional pelos direitos humanos.

Sua campanha resultou na aprovação, em 2012, pelo Congresso dos Estados Unidos, da Lei Magnitsky. Inicialmente focada na Rússia, a lei permitia sanções a estrangeiros envolvidos na morte de Sergei e em outras violações graves de direitos humanos e corrupção. Quatro anos depois, em 2016, a lei foi ampliada, tornando-se o Global Magnitsky Act, permitindo sanções a funcionários de governos estrangeiros em qualquer parte do mundo. Desde então, mais de 670 pessoas e entidades já foram atingidas por sanções com base nessa lei.


O Poder das Sanções da Lei Magnitsky


A Lei Global Magnitsky prevê sanções severas, como o bloqueio de ativos em solo americano, proibição de entrada nos Estados Unidos e proibição de transações financeiras com o indivíduo sancionado. Essas sanções visam diretamente pessoas, não países inteiros, atingindo o "bolso" do sancionado. Por isso, ela é apelidada de "pena de morte financeira" ou "sentença de morte bancária".

A lei é considerada uma "arma financeira" com potencial "tão catastrófico quanto de uma arma real". Se um indivíduo é sancionado, ele é "expulso do sistema financeiro". Qualquer banco que se envolver com ele não poderá se envolver com os Estados Unidos, com o dólar e com o sistema financeiro ocidental. O Office of Foreign Assets Control (OFAC), órgão do Departamento do Tesouro dos EUA, gerencia essas sanções. A desobediência a essas leis pode resultar em pesadas multas, como a do banco BNP Paribas, que pagou quase 9 bilhões de dólares por violar sanções. Além disso, bancos podem ser excluídos da SWIFT, a rede global de comunicação interbancária, o que na prática significa voltar "para a idade da pedra em termos financeiros".

Diversos países, como o Reino Unido, Canadá, União Europeia e Austrália, também adotaram suas próprias versões da Lei Magnitsky, tornando-a uma ideia global para punir diretamente indivíduos responsáveis por crimes de direitos humanos e corrupção.


Casos Notáveis de Aplicação da Lei Magnitsky


A lei Magnitsky foi aplicada em diversos casos emblemáticos ao redor do mundo, ilustrando seu poder:

   Rússia: Oficiais russos envolvidos na morte de Sergei Magnitsky foram os primeiros alvos em 2012 e 2013, perdendo acesso ao sistema financeiro ocidental.

   China: Oficiais chineses foram sancionados em 2020 por abusos contra a minoria Uyghur em Xinjiang, incluindo trabalho forçado e repressão cultural. Bancos chineses se recusaram a manter contas para os sancionados, temendo perder negócios com os EUA.

   Arábia Saudita: Envolvidos no assassinato do jornalista Jamal Khashoggi em 2018 foram sancionados.

   Venezuela: A partir de 2017, figuras do regime venezuelano, incluindo Nicolás Maduro, foram sancionadas por corrupção e violações de direitos humanos. Sanções mais amplas contra a estatal de petróleo PDVSA e o Banco Central contribuíram para o colapso do sistema bancário venezuelano e a desconexão da SWIFT.

   Irã: Sofreu sanções secundárias massivas que levaram à queda do PIB em 25% e desvalorização da moeda em 90%, forçando-o a negociar um acordo nuclear.

   Coreia do Norte: Enfrenta isolamento financeiro total há mais de 20 anos devido às sanções, com qualquer banco que opere com dinheiro norte-coreano sendo banido do sistema americano.

   ABLV Bank (Letônia): Em 2018, o banco foi declarado uma "instituição de preocupação primária em lavagem de dinheiro" pelo Departamento do Tesouro Americano. Isso resultou na perda de parceiros internacionais, congelamento de transferências e, em menos de uma semana, o banco se tornou um "cadáver corporativo", demonstrando o poder de um "relatório" americano.

Esses exemplos ilustram que a lei Magnitsky é aplicada em casos extremos de violação de direitos humanos, perseguição e corrupção, e não contra pequenos delitos.


A Lei Magnitsky no Contexto Brasileiro


Recentemente, a sanção de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro pela Lei Magnitsky colocou o Brasil em uma situação delicada, a primeira vez que um brasileiro é sancionado por essa lei. A reação do STF foi de desafio, com o presidente e outros ministros declarando que iriam ignorar as sanções e que a independência do Poder Judiciário brasileiro é inegociável.

No entanto, a lei Magnitsky não é uma interferência na soberania de uma nação, mas sim uma regra para pessoas e empresas que possuem relações com os Estados Unidos. Bancos estatais brasileiros como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal estão sob risco de sanção secundária se forem instruídos a descumprir a lei, pois possuem presença nos EUA (filial em Nova York do Banco do Brasil) e utilizam sistemas financeiros americanos, como SWIFT, e bandeiras de cartão de crédito/débito internacionais. A pressão política para que não bloqueiem as contas dos sancionados pode colocá-los em risco de multas milionárias e perda de contratos com sistemas americanos.


Consequências de Desafiar a Lei Magnitsky para o Brasil


Se o governo brasileiro decidir desafiar as sanções, ativando o que é chamado de "protocolo de destruição total", as consequências seriam devastadoras e de "guerra em duas frentes": primeiro, sanções primárias contra a pessoa, depois sanções secundárias contra quem a protege.


Os mecanismos de retaliação dos EUA incluem:


   Sanções Setoriais Contra o Sistema Bancário Brasileiro: Bancos brasileiros que descumprirem as sanções Magnitsky podem ser incluídos na lista SDN (Specially Designated Nationals), o que os impediria de fazer correspondent banking com bancos americanos, processar pagamentos em dólares e participar de financiamentos de comércio exterior. O "efeito de contaminação" faria com que outros bancos brasileiros que negociassem com os sancionados também ficassem sob suspeita, isolando todo o sistema bancário nacional em questão de dias.

   Apagão Digital: Empresas de tecnologia americanas (Amazon Web Services, Microsoft, Oracle, Cisco, Google, Apple) podem cortar o suporte e licenças para bancos brasileiros, levando ao colapso de infraestruturas digitais, como Pix, cartões de crédito e internet banking.

   Sequestro das Reservas Internacionais Brasileiras: Cerca de 75% das reservas brasileiras (aproximadamente 280 bilhões de dólares de um total de 370 bilhões) estão guardadas em bancos americanos, europeus e títulos do governo americano. O Departamento do Tesouro dos EUA poderia congelar esses fundos sob alegação de investigação, impossibilitando o Brasil de acessá-los.

   Desconexão do Sistema SWIFT: Embora não seja americano, o SWIFT é dominado pelos EUA, que podem pressionar pela expulsão de bancos brasileiros do sistema, paralisando o comércio internacional.

   Transformação de Commodities Brasileiras em Produtos Tóxicos: Empresas internacionais poderiam ser sancionadas por comprar commodities brasileiras se o Brasil proteger os sancionados, tornando os produtos brasileiros "radioativos comercialmente" e paralisando as exportações.

   Pressão Sobre Seguradoras Internacionais: Com 95% das seguradoras internacionais sendo americanas ou europeias, elas poderiam ser proibidas de segurar cargas brasileiras, impedindo navios e aviões de sair dos portos.

   Matriz Financeira (Vigilância Tecnológica): Os EUA possuem um sistema de inteligência artificial que monitora trilhões de transações globalmente 24 horas por dia, detectando qualquer tentativa de burlar as sanções em tempo real.

A experiência de países como Rússia, Irã, Venezuela e Coreia do Norte demonstra que, mesmo com preparo e sistemas alternativos, as economias foram devastadas.


O Preço Humano de Desafiar as Sanções


Um eventual desafio do Brasil à Lei Magnitsky traria uma catástrofe humanitária:

   Crise Sanitária: O Brasil importa 95% dos ingredientes farmacêuticos ativos e 80% dos equipamentos hospitalares. Sem acesso ao sistema financeiro internacional, laboratórios e fornecedores estrangeiros deixariam de aceitar pagamentos, levando à escassez de medicamentos essenciais e equipamentos médicos, resultando em "milhares de mortes evitáveis".

   Destruição do Sistema Alimentar: O país importa 85% dos fertilizantes. A produtividade agrícola despencaria, os preços dos alimentos disparariam e as exportações agrícolas parariam, causando o colapso do agronegócio e a perda de milhões de empregos rurais.

   Crise Energética: O Brasil importa 70% do petróleo e 40% do gás natural. A falta de pagamentos a fornecedores paralisaria refinarias, postos de combustíveis e usinas termoelétricas, causando instabilidade elétrica e paralisação industrial.

   Isolamento Tecnológico: Sem acesso a empresas como Google, Microsoft, Amazon e Apple, o Brasil se tornaria academicamente e tecnologicamente isolado, afetando universidades, pesquisas e empresas.

   Êxodo Massivo da Classe Média Alta: Médicos, engenheiros, cientistas e empresários tentariam emigrar, resultando em um "genocídio intelectual" e perda de capital humano qualificado.

   Destruição do Sistema Previdenciário: Fundos de pensão com investimentos em títulos estrangeiros seriam congelados, podendo levar à interrupção do pagamento de aposentadorias.


Conclusão


A decisão do Brasil de proteger um ministro sancionado pela Lei Magnitsky versus proteger os 220 milhões de brasileiros de uma catástrofe humanitária configura um dilema moral crucial. A realidade é que o Brasil, com sua profunda dependência do sistema internacional para medicamentos, fertilizantes, tecnologia e finanças, não tem condições de desafiar o sistema financeiro americano. A soberania é um luxo que países dependentes não podem pagar, e o poder real no mundo moderno reside no controle do sistema financeiro global, que está em Washington.

Embora a defesa da soberania nacional seja importante, o custo de "bater de frente" com os Estados Unidos seria catastrófico para a economia e a sociedade brasileira. Nenhum banco brasileiro, seja público ou privado, aceitaria suicidar a instituição para agradar um cliente, por mais poderoso que seja, pois isso traria um impacto macroeconômico devastador e a perda de parceiras e operações internacionais de grande valor. O nome de Sergei Magnitsky, silenciado por um crime burocrático, tornou-se um símbolo universal na luta contra a tirania e a impunidade, e sua história continua a moldar as relações financeiras globais.