Um Cristão Contra 20 Macumbeiros

 


Reflexões sobre Fé, Confronto e Pluralidade: Uma Análise do Debate "1 Cristão VS 20 Macumbeiros"

O vídeo apresentado pelo canal "Clone", descrito pelo seu criador como um dos vídeos "mais trabalhados", "mais produzidos" e "mais caros" do canal, lança luz sobre um intenso e sincero debate religioso, reunindo um cristão contra 20 praticantes de religiões de matriz africana e esotéricas. O objetivo declarado não é a briga ou o ataque, mas sim "colocar crenças totalmente diferentes cara a cara e deixar cada um falar exatamente o que pensa".

A reflexão sobre este conteúdo deve focar nas principais dicotomias teológicas e nas experiências pessoais apresentadas, destacando a complexidade das crenças e a busca por respeito em meio à discussão real.


A Autoridade da Bíblia e a Crítica Textual

Um dos primeiros e mais acalorados pontos de discussão envolve a natureza da Bíblia. Israel Júnior, o cristão (teólogo e educador físico), inicia afirmando: "A Bíblia é a palavra de Deus".

Este ponto é imediatamente contestado. O Mestre Felpes, quimbandeiro, questiona se há algum versículo que afirme explicitamente que a Bíblia é a palavra de Deus e levanta a questão da inerrância. Israel defende que Jesus se intitula como o Verbo (a Palavra) em João 1:1, e que a Bíblia é inspirada pelo Espírito Santo para os cristãos.

Contudo, a discussão se aprofunda na crítica textual e na perfeição divina. Felpes argumenta que, se Deus é perfeito e imutável, como a Bíblia pode ter "várias contradições e incoerência" e ter sua canonicidade definida por um concílio (votação humana). O cristianismo protestante aceita 66 livros, enquanto o catolicismo aceita 72, evidenciando que houve debates para definir o que era canônico ou inspirado. Israel defende que o que parece contradição (como nas narrativas de Mateus e Lucas) na verdade prova a autenticidade, similar a depoimentos em investigação criminal.

O sacerdote de Quimbanda de Angola, Atos Guizard, reforça que o consenso cristão é que a Bíblia é a "Escritura Sagrada", mas que dizer que ela é a "palavra de Deus" (o Verbo/Cristo) é uma incongruência, pois isso implicaria a necessidade de seguir práticas como o sacrifício animal do Antigo Testamento, algo que Israel Júnior afirma ter sido abolido em Cristo.

Barganha Espiritual: Mérito, Graça e Dízimo

O debate sobre se o evangelho não trabalha com barganha espiritual gera grande controvérsia. Israel defende que a salvação é por graça, não por mérito, e que o jejum é feito para relacionamento com Deus, e não para ter algo em troca.

Os debatedores de matriz africana, como Lady Luck (satanista e quimbandeira), e Alex Solário (umbandista), refutam isso citando o dízimo e os Dez Mandamentos. Alex argumenta que a salvação já é uma barganha espiritual.

Paulo Dochó, babalorixá, questiona como o evangelho não trabalha com barganha se o dízimo é frequentemente cobrado. Israel explica que o dízimo em Malaquias 3:10 não era dinheiro, mas sim o dízimo do cominho, endro e hortelã, destinado a alimentar a tribo de Levi, que cuidava do templo. Ele condena pastores que distorcem o texto para dizer que o "devorador" é um demônio que entrará na casa se o fiel não pagar 10% do salário, classificando tal prática como a de "falsos profetas".

A MC Trans, quimbandeira, e Lady Luck, no entanto, veem a troca como parte natural da fé, inclusive na semântica da palavra. Lady Luck afirma: "Na minha religião Exu é troca eu sou que bandeira eu dou pra minha pomba gira ela me dá então isso é uma barganha na semântica da palavra barganha".

Entidades e Prosperidade: O Espírito Enganador vs. Transformação

O ponto mais sensível do debate é a afirmação de Israel de que "o que vocês chamam de entidades nós entendemos como espíritos enganadores".

Praticantes de Quimbanda e Umbanda reagem com veemência, citando a história e o trabalho de seus guias. Elines, mameto de Quimbanda, questiona como Deus, que não faz acepção de pessoas (Romanos 2:11) e aceita todas as nações, permite que seus espíritos sejam demonizados. Outros afirmam que as entidades são ancestrais (mulheres queimadas como bruxas, escravizados) que trabalham pela evolução.

O debate se volta então para a função e moralidade dessas entidades. Hélder, umbandista, e MC Trans, citam exemplos de Pombagiras e Maria Padilha que tiraram pessoas da pornografia e da prostituição (que eles veem como um direito e não necessariamente um erro). Hélder questiona: se Jesus Cristo salvou Israel do vício da pornografia, por que uma Maria Padilha que tira uma mulher da prostituição seria um espírito enganador?. Israel responde que, biblicamente, espíritos enganadores têm poder para curar e podem se transformar em anjos de luz para iludir.

A questão da prosperidade também é central. Israel defende que a Bíblia é o "único manual completo para uma vida próspera e transformada", definindo prosperidade não como dinheiro, mas como ter uma boa família, inteligência emocional e saber lidar com as adversidades.

Em contraste, vários participantes usam seus testemunhos de vida para refutar essa exclusividade. Lequê, babalaixá, relata que sua mãe evangélica não conseguiu ajudá-lo na igreja, mas ele encontrou transformação, prosperidade financeira e tirou 150 filhos de santo da droga e da bebida através do "espiritual do sagrado". Mara de Padilha e MC Trans, ambas ex-prostitutas e ex-viciadas que sofreram com o abandono da igreja, afirmam ter alcançado prosperidade (empresas, carros, e, mais importante, uma família e amor) através de suas entidades, como Maria Padilha do Cabaré e Maria Navalha.

O Problema do Mal e o Sofrimento

Outro dilema levantado é o da onipresença e onisciência de Deus. João, bruxo e candomblecista, questiona por que, se Deus está em todos os lugares, inclusive nos pecados capitais, ele condena onde ele próprio está.

Roberton de Oxum e umbandistas questionam a justiça divina frente à intolerância religiosa e ao sofrimento (como no conflito palestino ou nos ataques a terreiros no Rio de Janeiro). Israel responde que Deus é o "justo juiz", mas que permite o livre arbítrio do homem, razão pela qual o mal existe no mundo. Os cristãos aguardam a segunda vinda de Cristo, onde não haverá mais dor, luto ou choro.

A Importância do Diálogo

Apesar dos momentos de tensão e das discordâncias profundas (incluindo acusações de buscar engajamento e vomitar opinião), o debate demonstrou a importância da troca de ideias. Ao final, Israel reforça sua crença de que o evangelho é um "estilo de vida" baseado no primeiro mandamento, que é amar, e expressa solidariedade e amor aos debatedores, mesmo com a manutenção das discordâncias.

O debate é um espelho das tensões religiosas brasileiras, mostrando que a transformação e a prosperidade são experiências subjetivas e multiformes, não exclusivas de uma única tradição, e que as pessoas buscam a plenitude e o alívio do sofrimento em diversas fontes de fé. A discussão encoraja a reflexão sobre o que realmente significa a fé, o mérito, a graça e a convivência em um cenário de pluralidade religiosa.


Analogia para Solidificar a Compreensão:

Imagine um conjunto de jardineiros cultivando o mesmo vale, mas cada um usando um manual diferente. O primeiro jardineiro (o cristão) insiste que seu Manual (a Bíblia) é o único manual completo para produzir frutos perfeitos. Os outros jardineiros (os praticantes das religiões de matriz africana) mostram que, seguindo seus próprios Métodos (guias, orixás, tradição), eles também produziram colheitas abundantes e resgataram plantas à beira da morte (transformação e prosperidade). A reflexão não está em qual manual é correto, mas em reconhecer que a natureza da colheita (a vida transformada) pode ser alcançada por caminhos diversos, e que a definição de "fruto perfeito" (prosperidade) varia drasticamente entre os jardineiros (dinheiro vs. paz e família).


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