Antropologia da Riqueza e Distinção Brasileira

 


Coisa de Rico: Dinheiro, Performance e a Invasão dos Códigos de Distinção no Brasil

O lançamento recente do livro Coisa de Rico: a vida dos endinheirados brasileiros, do antropólogo Michel Alcoforado, tem capturado a atenção do público, oferecendo uma janela para um mundo socialmente fechado e repleto de códigos de conduta. O trabalho, resultado de 15 anos de pesquisa intensa de campo, é descrito como uma obra de ciências sociais com uma linguagem extremamente acessível, saborosa e "repleta de veneno", que se propõe a explicar o luxo no Brasil e o modus operandi das pessoas imersas nesse universo de dinheiro.

Riqueza: Mais do que o Falo Capitalista

A ideia central do livro, conforme resenhado, é que a riqueza é difícil de definir em termos meramente objetivos. Embora o dinheiro seja fundamental — e o vídeo o compara a um "falo no mundo capitalista" — ele jamais será suficiente para posicionar alguém na estrutura social da elite. Critérios superficiais do IBGE sobre classes sociais não dão conta de capturar a complexidade do fenômeno.

Curiosamente, o Michel Alcoforado, que dedicou 15 anos a ganhar a confiança de milionários e até alguns bilionários brasileiros, descobriu que quase ninguém admite pertencer à classe dos ricos. O rico brasileiro sempre consegue enxergar alguém que tem mais dinheiro, definindo o "rico" como o outro.

Se a riqueza não é apenas uma métrica bancária, ela é, sobretudo, uma performance. Assim como é necessário performar para ser reconhecido como homem ou mulher, é preciso performar para ser um "rico" aceito. Essa performance exige comportamento específico, frequência em meios exclusivos e conhecimento dos códigos de identificação.

O Trabalho de Ser Rico e a Proteção dos Muros

Ao contrário do mito de que a elite passa o dia sem fazer nada (homens jogando golfe e mulheres arrumando o cabelo), a manutenção do status é de "dificílima manutenção". É preciso trabalhar constantemente, exibindo o poder de consumo para convencer a si mesmo e aos seus iguais de que se é rico de verdade. Isso implica gastar o dinheiro, trocando de carro todo ano, comprando imóveis, viajando, dando festas e ostentando para que os outros ricos respeitem e aceitem a pessoa em seus círculos. A vida da elite é uma dança constante onde o risco de "dançar fora do compasso" ou ser rejeitado é sempre presente.

Um exemplo chocante dessa rigidez estrutural é o caso da atriz Guilhermina Guinle. Mesmo sendo herdeira de uma das famílias mais aristocráticas e influentes do Brasil (os Guinle), sua escolha de carreira (atriz de novelas) e seus casamentos foram considerados "inapropriados" pelos ricos tradicionais de sua cidade, resultando na negação de sua titularidade no sofisticado e exclusivo Country Club do Rio de Janeiro. Essa história reflete as regras de uma estrutura social, que, mesmo que pareçam naturais, precisam ser compreendidas.

Quando os membros dessa classe social exclusiva sentem-se ameaçados, especialmente pela "invasão" de classes emergentes, eles se empenham em "fechar melhor estes muros", dificultando ainda mais os critérios para a aceitação.

A Emulação e a Batalha pelos Símbolos de Distinção

O trabalho antropológico revela que a estrutura de distinção da elite afeta a todos no Brasil, pois as camadas não-ricas (classe média e trabalhadora) estão constantemente "tentando emular os comportamentos" e as marcas de distinção dos mais ricos.

Essa emulação se manifesta de diversas formas:

  1. A Busca pela Ancestralidade Imaginada: Existe um "desespero das camadas médias brasileiras por recuperar um passaporte europeu" (como o italiano). O passaporte, que confere uma distinção de ancestralidade, é almejado mesmo que o processo de renovação seja burocrático e humilhante (com filas e taxas altíssimas impostas por consulados). As pessoas que passam por essa humilhação se sentem "diferenciadas" por terem direito a um documento europeu, espelhando a tentativa dos ricos de construir uma ancestralidade e tradição, mesmo que imaginada.
  2. As Marcas de Grife: O desejo por celulares de marcas específicas, roupas com logos gigantescos, e a desvalorização de marcas "menos elegantes" são tentativas de criar uma distinção social entre "bem-sucedidos e fracassados".

A expansão das redes sociais e das blogueiras de luxo tem "bagunçado o segredo" desses objetos de grife. Isso obriga os objetos a se hipervalorizarem (como Rolex e bolsas Louis Vuitton) ou a perderem a força, popularizando-se e tornando-se "gastos".

A tensão sobre os códigos é brilhantemente ilustrada pela história de Angélica, uma cuidadora de idosos da classe trabalhadora. Ela rejeita a fragrância popular Victoria's Secret, chamando-a de "o cheiro da pobreza", e decide comprar o perfume J'Adore (Dior), uma fragrância da elite global. A reação dela é um ato de consciência: "Quando eu subir nesse prédio fino entrar no elevador cheirando a Jador as madames vão ter que inventar outro cheiro onde já se viu agora empregada tem o mesmo cheiro de rico o mundo tá acabando".

Essa anedota final mostra que a distinção é um jogo de soma zero: para o rico continuar sendo rico, o "cheiro" precisa ser exclusivo. Quando o código é invadido, a elite é forçada a inovar, elevando as barreiras. O livro, que combina histórias fascinantes com embasamento teórico sólido, serve como um guia para compreendermos esses mecanismos automáticos e sociais que regem a diferença e a ambição no Brasil.


Analogia para Clarificação:

Podemos pensar nos códigos de distinção da elite como senhas em constante mudança para entrar em um clube exclusivo. Não basta ter dinheiro (o bilhete); você precisa saber a senha atual (a performance, a marca certa, o perfume certo, o clube certo). Assim que as classes "emergentes" (os não-membros) descobrem a senha e começam a usá-la, a elite é forçada a mudar a senha (substituir o perfume J'Adore, negar o acesso no clube, ostentar novos objetos) para manter a porta fechada e garantir que apenas os "iguais" permaneçam lá dentro.


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