A Crise de Contratação nos Supermercados: Por Que Ninguém Mais Quer Usar o Crachá?
O setor supermercadista brasileiro está em uma encruzilhada: apesar de centenas de milhares de vagas abertas, as empresas simplesmente não conseguem contratar e, quando o fazem, a rotatividade é altíssima. Nos anos 2000, trabalhar em supermercado era visto como um "ritual de passagem" e frequentemente a porta de entrada para o mercado formal de trabalho. Essa realidade, no entanto, não existe mais.
Atualmente, o setor enfrenta dificuldades para preencher cerca de 350 mil postos de trabalho. Esse fenômeno ocorre em um momento em que a taxa de desemprego no Brasil está em um dos níveis mais baixos da história recente (6,6%, segundo o IBGE). O “jogo virou”: se no passado o trabalhador procurava o emprego, hoje são as empresas que procuram o trabalhador.
A Perda de Apelo do Modelo Tradicional
O modelo tradicional de trabalho em supermercado — tipicamente 8 horas por dia, muitas vezes sem ar condicionado e com salário mínimo — perdeu o apelo. A internet transformou o mercado de trabalho, oferecendo alternativas mais flexíveis que não exigem o cumprimento de longas jornadas, muitas vezes incluindo o trabalho nos finais de semana.
O vice-presidente da Abras, Marcio Milan, destaca que o “perfil do trabalhador vem mudando” e que os jovens, que antes viam o supermercado como o primeiro emprego, agora preferem trabalhos informais devido à maior flexibilidade. O economista Cícero Pimenteira, da UFRRJ, explica que os jovens não se veem mais como um exército de trabalho; eles buscam flexibilidade, rotina menos engessada e mais sentido no que fazem.
Além da rigidez do modelo, a remuneração é um fator crítico. Em muitos casos, o salário oferecido não é compatível com o custo de vida básico. Em Nova Iguaçu, por exemplo, uma vaga de operador de caixa pagava R$ 1.600, mas esse valor é insuficiente quando se considera que a cesta básica custa R$ 432 e o aluguel de um apartamento simples pode ultrapassar R$ 900, sem contar despesas como luz e transporte.
Para piorar, o crachá do funcionário frequentemente vem com um “etc” no final. As funções são acumuladas: um operador de caixa pode ter que repor mercadoria, limpar o chão e fazer "o que mais aparecer".
As Margens Baixas e as Medidas Desesperadas
Embora enfrentem um alto fluxo de vendas, os supermercados geralmente operam com margens líquidas muito baixas, variando entre 2% e 5%. Isso significa que, a cada R$ 100 vendidos, sobram apenas R$ 2 a R$ 5 para o negócio. Essa restrição financeira ajuda a explicar a necessidade de acumular funções e a dificuldade em oferecer remunerações atrativas, distantes do custo de vida.
A crise é tão profunda que impediu a abertura de lojas. A rede Oxxo chegou a travar a inauguração de 30 unidades em São Paulo por não conseguir formar equipes. Da mesma forma, a rede Hirota, ao tentar inaugurar uma nova loja em São Paulo, não preencheu as 80 vagas previstas e precisou realocar 15 funcionários de outras unidades, gerando custos adicionais com transporte, hospedagem e alimentação.
Diante do desespero, o setor tem recorrido a estratégias não convencionais:
- Aumento Salarial: Uma das poucas estratégias que funcionam, segundo a CNC, é aumentar o salário inicial de admissão acima da variação média do mercado para atrair profissionais em tempos de escassez. Contudo, o aumento nem sempre é suficiente para reter o trabalhador.
- Perfis Não Tradicionais: Redes passaram a contratar idosos, aposentados, pessoas sem nenhuma experiência e pessoas com deficiência, pois estes perfis demonstram maior estabilidade e disposição. O Carrefour, por exemplo, contratou 53 mil pessoas via CadÚnico (cadastro do governo para famílias de baixa renda) somente em 2024.
- Parceria Militar: Foi firmada parceria com quartéis para contratar jovens que acabaram de cumprir o serviço militar obrigatório, assumindo que a disciplina militar poderia ajudar a segurar o tranco no supermercado. Cerca de 80% desses reservistas conseguem emprego logo após deixar a farda.
- Trabalho Intermitente: O trabalho intermitente tem ganhado espaço, sendo uma solução que, embora precarize ao não oferecer previsão de renda, é buscada pelo jovem por oferecer a flexibilidade de ser chamado apenas quando necessário.
- Aceleração da Contratação: Ferramentas como a Helppi aceleram o processo de contratação, que antes levava dias. A rede Tauste, por exemplo, cortou o tempo médio de contratação de 15 dias para apenas uma semana.
A Ascensão do Autoatendimento
Enquanto buscam novos perfis de mão de obra, os supermercados no Brasil, como o Pão de Açúcar (com 90% das lojas utilizando a tecnologia) e a rede Hortifruti, estão acelerando a adoção do self-checkout (autoatendimento). Segundo a consultoria RBR, o setor de autoatendimento no país já soma cerca de 8 mil unidades e está em forte ascensão.
Curiosamente, no cenário internacional, redes no Reino Unido (como Booths) e nos EUA estão removendo suas máquinas de autoatendimento devido a reclamações de lentidão, impessoalidade e aumento de furtos e erros. No Brasil, a adoção segue crescendo, com a automatização tomando conta e alguns mercados já removendo funcionários de setores como padaria ou açougue.
O Verdadeiro Desafio é a Retenção
O ponto central, no entanto, é que contratar é fácil, manter é que é o difícil. A alta rotatividade faz com que os trabalhadores durem pouco nas funções, transformando o setor em uma "esteira girando sem parar".
Segundo a especialista em RH Evelyn Rodrigues, sem um processo de integração bem feito, sem plano de carreira e sem um ambiente minimamente saudável, o trabalhador não fica. Ele vai embora na primeira oferta de trabalho informal que pague igual e cobre menos.
Para sair do sufoco, o setor supermercadista precisa urgentemente olhar para dentro, melhorando a rotina, os benefícios, o tratamento e, claro, o salário. Caso contrário, mesmo com a busca por reservistas do Exército, idosos e trabalhadores do CadÚnico, as vagas continuarão abertas, e cada vez menos gente estará disposta a ocupá-las.