Artigo para Reflexão: O Espelho nas Ruas: A Questão dos Flanelinhas e a Nossa Cidadania
A cena é comum nas ruas de Belém: um motorista procura uma vaga, estaciona e, ao retornar, se depara com uma cobrança indevida, por vezes acompanhada de ameaças e intimidações. A reportagem sobre a atuação dos chamados "flanelinhas" revela mais do que um problema pontual de desordem urbana; ela coloca um espelho diante de nós, sociedade, e nos convida a refletir sobre questões profundas de convivência, legalidade e cidadania.
Por um lado, é inegável o cansaço e a sensação de insegurança vividos por motoristas e pedestres. Ninguém deve ser coagido a pagar por um serviço não solicitado em um espaço que é público por direito. A intensificação das fiscalizações pela Prefeitura, por meio do projeto “Belém em Ordem”, e a criação de um canal de denúncias (153) são medidas necessárias e bem-vindas. Elas reafirmam um princípio fundamental: a rua é de todos, e a lei deve prevalecer sobre a intimidação. A ação do poder público é crucial para restabelecer a ordem e garantir que o Código Penal e o Código de Trânsito Brasileiro sejam respeitados.
No entanto, ao mesmo tempo em que combatemos firmemente as condutas abusivas e criminosas, precisamos nos perguntar: o que leva indivíduos a adotarem essa prática? A figura do flanelinha, muitas vezes, está na interseção perigosa entre a informalidade, a falta de oportunidades e a sobrevivência pura e simples. Enquanto a fiscalização atua na ponta final do problema – a ação ilegal –, estamos, como sociedade, olhando para a raiz?
A existência dessas práticas pode ser um sintoma de questões sociais mais amplas. A busca por uma cidade "mais segura e organizada", objetivo nobre do “Belém em Ordem”, deve incluir uma reflexão sobre a inclusão socioeconômica. O que pode ser oferecido, em termos de geração de emprego e renda formal, para quem hoje vê na apropriação indevida do espaço público a única alternativa?
Este não é um argumento para justificar o injustificável. A coerção e a ameaça são inaceitáveis. Trata-se, sim, de entender que a solução definitiva pode ser mais complexa do que apenas reprimir. É possível que a mesma administração que hoje atua com fiscalização possa, em paralelo, criar políticas públicas que absorvam essa mão de obra informal, canalizando-a para serviços urbanos legítimos e valorizados.
O que podemos fazer?
1. Como Cidadãos: Devemos utilizar o canal de denúncias (153) de forma responsável. Denunciar não é apenas um direito, mas um dever cívico que protege a coletividade. Ao nos calarmos, nos tornamos cúmplices da deterioração do espaço público.
2. Como Sociedade: Precisamos fomentar um debate que vá além da simples criminalização dos indivíduos. É preciso discutir as causas e pressionar por soluções integradas que combinem fiscalização eficiente com oportunidades reais.
3. Como Poder Público: A iniciativa é louvável, mas o desafio é sustentá-la e aprofundá-la. A prefeitura tem a oportunidade de ser um agente de transformação não apenas punitivo, mas também social, investigando quem são essas pessoas e propondo alternativas de vida digna.
A convivência nos espaços públicos é um termômetro da saúde de uma sociedade. O problema dos flanelinhas em Belém nos mostra que a busca pela ordem não pode ser dissociada da busca por justiça social. A pergunta que fica é: estamos dispostos a enxergar o problema em sua totalidade e a construir, juntos, uma solução que seja não apenas eficaz, mas também humana e duradoura? A resposta define que tipo de cidade realmente desejamos.